sábado, 2 de março de 2013

Um novo olhar sobre os números pitagóricos


O objetivo desta postagem é publicar um trabalho de autoria do Professor Fernando Cézar Gonçalves Manso (UTFPR-CM) e co-autoria minha (Pedro R.), no qual são apresentados alguns interessantes resultados (com elementares demonstrações) sobre ternos pitagóricos. Tais resultados incluem tanto um algoritmo para gerar todos eles a partir de um cateto dado (vide teorema 1) quanto algumas condições para obter ternos primitivos (vide teorema 2). O BLOG MANTHANO agradece imensamente a contribuição do professor Fernando Manso que, a partir de suas finas observações, tornou possível a elaboração deste conteúdo.


INTRODUÇÃO

Os ternos pitagóricos são conhecidos desde a antiguidade, mesmo antes de Pitágoras. Há fortes evidências de que, cerca de mil anos antes, os Babilônios já conheciam um número considerável dessas tríades. O terno $(a,b,c)$ chama-se terno pitagórico se, e somente se, $a$, $b$ e $c$ forem inteiros positivos tais que $a^2+b^2=c^2$; $a$ e $b$ são os catetos e $c$ é a hipotenusa. Um terno pitagórico pode ser primitivo ou secundário; é primitivo quando o MDC (máximo divisor comum) de $a$, $b$ e $c$ for igual a $1$, (ou seja, quando $a$, $b$ e $c$ forem primos entre si) e é secundário em caso contrário. Um terno ainda pode ser simétrico, quando os seus elementos constituem uma Progressão Aritmética e não simétrico, quando isso não ocorre.

Geralmente os ternos pitagóricos são construídos a partir de dois parâmetros e nenhum deles é um dos números que formam a tríade, por exemplo quando se usa a equação geradora $(x^2-y^2 )^2+(2xy)^2=(x^2+y^2 )^2$ que depende dos naturais $x$ e $y$ tais que $x > y$. A proposta aqui é, então, a construção de ternos pitagóricos utilizando um dos catetos como parâmetro.

Em artigo apresentado na RPM 07, Andréa Rothbart e Bruce Pausell mostram uma maneira de gerar todos os ternos pitagóricos colocando 
$$(a,b,c)=\left (\sqrt {uv}, \frac{u-v}{2}, \frac{u+v}{2}\right),$$
onde $u$ e $v$ têm a mesma paridade, $u > v$ e o produto $uv$ é um quadrado perfeito. Assim, dado um cateto específico, a fórmula de Rothbart e Pausell é capaz de gerar ternos pitagóricos nos quais o dado cateto figura. Esse trabalho guarda, portanto, certa semelhança com o trabalho de Rothbart e Pausell no que diz respeito ao seu propósito mas difere deste em sua forma. Outro diferencial é que detalharemos algumas características dos parâmetros envolvidos que possibilitem uma identificação prévia do tipo (primitivo ou secundário) do terno pitagórico gerado.

CONSTRUINDO OS TERNOS

Sabe-se, desde a antiguidade, que se $m$ é um número ímpar maior do que $1$, então o terno 
$$\left(m,\frac{m^2-1}{2},\frac{m^2+1}{2}\right)=\left (m,\frac{m^2-1^2}{2\cdot 1} ,\frac{m^2+1^2}{2\cdot 1}\right)$$
é pitagórico. Contudo, nem todos os ternos podem ser obtidos a partir desta fórmula. O teorema a seguir generaliza este resultado, possibilitando a construção de todos os ternos.
Teorema 1: Seja $a$ um número natural maior do que $2$. A fim de que o terno $(a,b,c)$ seja pitagórico é necessário, e suficiente, que exista um número natural $d<a$ da mesma paridade de $a$ tal que $a^2/d$ também tenha a mesma paridade de $a$ e tal que se tenha
$$(a,b,c)=\left (a,\frac{a^2-d^2}{2d},\frac{a^2+d^2}{2d}\right ).$$
Prova da suficiência: facilmente se verifica que $a^2+b^2=c^2$. Resta mostrar que $b$ e $c$ são, de fato, inteiros positivos. Temos dois casos.

- Caso I: $a$ é ímpar. Como $d$ divide $a^2$, existe $ t $ tal que $a^2/d=t$. Note que $ t $ é ímpar (pois o quociente de ímpares nunca é par). Como $d$ tem a mesma paridade de $a$, o número $(t-d)$ é par, logo existe $m$ tal que $(t-d)/2=m$. Em face destas observações, podemos escrever
$$\frac{a^2-d^2}{2d}=\frac{a^2}{2d}-\frac{d^2}{2d}=\frac{t}{2}-\frac{d}{2}=\frac{t-d}{2}=m$$
Portanto o cateto $b$ é um inteiro. Além disso, é positivo pois
$$d<a \Rightarrow d^2<a^2 \Rightarrow d<\frac{a^2}{d}=t \Rightarrow t-d>0\Rightarrow m>0$$
De maneira semelhante se demonstra que a hipotenusa é um inteiro positivo (basta trocar o sinal de $-$ pelo sinal de $+$).

- Caso II: $a$ é par. O raciocínio é análogo.

Prova da necessidade: seja $(a,b,c)$ um terno pitagórico. Devemos mostrar que existe um número $d<a$ de mesma paridade de $a$ tal que $a^2/d$ tem a mesma paridade de $a$ e tal que
$$(a,b,c)=\left (a,\frac{a^2-d^2}{2d},\frac{a^2+d^2}{2d}\right ).$$
Além disso, precisamos mostrar que $a>2$. Pondo $d=c-b$, elevando ambos os lados ao quadrado e subtraindo $a^2$ de cada um deles obtemos $d^2-a^2=c^2-2bc+b^2-a^2$. Lembrando que $c^2=a^2+b^2$ podemos obter
$$\frac{a^2-d^2}{2d}=b.$$
Esta última igualdade revela que $d$ divide $a^2$, caso contrário
$$b=\frac{1}{2}\left (\frac{a^2}{d}-d\right )$$
não poderia ser um inteiro. Note que a parcela dentro do último parêntese revela que $d$ deve ter a mesma paridade de $a$, caso contrário, novamente, $b$ não poderia ser inteiro (suponha que $a$ e $d$ têm paridades distintas e veja o que acontece). Para ver que $d<a$ e, por conseguinte, que $a>2$ note que $c-b<c+b$ e $d=c-b$ implicam
$$(c-b)d<(c+b)(c-b)=c^2-b^2\Rightarrow d^2<a^2\Rightarrow d<a.$$
Como $2$ não possui divisor de mesma paridade e menor do que si próprio, $a$ tem que ser maior do que $2$.

Exemplo 1: pondo $a=10$ e $d =2$ obtemos o terno $(10, 24, 26)$.

Exemplo 2: o teorema 1 nos dá uma maneira de determinar todos os ternos a partir de um dado cateto. Por exemplo, se quisermos determinar todos os ternos tais que um dos catetos seja $102$ podemos proceder da seguinte maneira:

- Encontramos todos os divisores de $102^2=10404$ menores do que $102$: $1$, $2$, $3$, $4$, $6$, $9$, $12$, $17$, $18$, $34$, $36$, $51$, $68$.

- Selecionamos os que possuem a mesma paridade de $102$: $2$, $4$, $6$, $12$, $18$, $34$, $36$, $68$.

- Filtramos os que, ao dividirem $102^2$, forneçam um quociente da mesma paridade de $102$: $2$, $6$, $18$, $34$.

- Fazemos $a=102$ e $d=2$, $6$, $18$ e $34$ na fórmula dada pelo teorema. Os ternos procurados são, portanto, $(102, 2600, 2602)$, $(102, 864, 870)$, $(102, 280, 298)$ e $(102, 136, 170)$.

ALGUMAS APLICAÇÕES

Um ponto interessante em olhar os ternos sobre a perspectiva trazida no teorema 1 é que ela nos fornece sugestões para resolver alguns problemas. Vejamos alguns exemplos:

Exercício 1: mostre que o quadrado de qualquer natural maior do que $2$ pode ser escrito como diferença de dois quadrados de maneira não trivial (ou seja, sem que uma das parcelas seja nula).

Solução: queremos mostrar que dado qualquer natural $q>2$, existem dois naturais $m\neq 0$ e $n\neq 0$ tais que $q^2=n^2-m^2$. Observe que todo natural $q>2$ possui, no mínimo, um divisor da mesma paridade dele (notadamente, $2$ se ele for par e $1$ se ele for ímpar). Assim, pelo teorema 1, sempre poderemos encontrar uma tripla $(q,m,n)$ satisfazendo $q^2+m^2=n^2$ ou, o que dá na mesma, $q^2=n^2-m^2$.

Exercício 2: encontrar o triângulo retângulo de menor perímetro e lados inteiros, cujo um dos catetos mede $12$.

Solução: pelo teorema 1, o perímetro de qualquer triângulo retângulo de lados inteiros pode se escrito sob a forma 
$$P=a+\frac{a^2-d^2}{2d}+\frac{a^2+d^2}{2d}=a+\frac{a^2}{d}.$$
Fixando $a$, vemos que $P$ assumirá o menor valor quando $d$ assumir o maior possível. Como $d=8$ é o maior divisor par de $12^2=144$ menor do que $12$ e que proporciona um quociente par, o triângulo procurado é aquele no qual $a=12$, $b=5$ e $c=13$.

Exercício 3: dado $n$ ímpar, construir $\sqrt{n}$.

Solução: Basta observar que pondo $a=\sqrt{n}$ e $d=1$ na fórmula do teorema 1 ainda obtemos $b$ e $c$ inteiros. Daí é só construir o triângulo retângulo cujo cateto é $b$ e cuja hipotenusa é $c$. Este procedimento determinará o segundo cateto que será, justamente, o segmento pedido.

CONSTRUINDO TERNOS PRIMITIVOS

Apresentaremos a seguir, um teorema que nos dá algumas condições suficientes e outras necessárias para saber se o terno gerado a partir de um dado cateto será, ou não, primitivo.
Teorema 2: Seja $a$ um número natural maior do que $2$ e seja $d<a$ um natural da mesma paridade de $a$ tal que $a^2/d$ também tem a mesma paridade de $a$.

Chamemos $(a,b,c)=\left(a,\frac{a^2-d^2}{2d},\frac{a^2+d^2}{2d}\right)$ de terno gerado por $a$.

Afirmamos que:
(a) se $n$ é ímpar, $a=2n$ jamais irá gerar um terno primitivo.
(b) se $a$ for ímpar, então $d=1$ sempre irá gerar um terno primitivo.
(c) se $n$ é ímpar, $a=2(n+1)$ sempre irá gerar um terno primitivo para $d=2$.
(d) se $d$ valer a metade, ou a terça parte, de $a$ então o terno gerado será secundário e simétrico.
A demonstração deste teorema, semelhantemente à demonstração do Teorema 1, pode ser feita a partir de propriedades elementares dos números inteiros. A título de exemplo, vejamos em detalhes a prova da primeira afirmação.

Prova do item (a): como $d$ é par, existe um inteiro $k$ tal que $d=2k$. Deste modo, o cateto $b$ terá a forma $b=n^2/k-k$. Pelo teorema 1, este número é inteiro e portanto $k$ tem que dividir $n^2$. Como $n^2$ é ímpar (pois $n$ é ímpar), $k$ também é ímpar (pois se fosse par não poderia dividir um ímpar). Como o quociente de ímpar é sempre ímpar, concluímos que $n^2/k$ é ímpar e, por conseguinte, o cateto $b$ é par (pois a soma de ímpares nunca é ímpar). Assim sendo, a hipotenusa $c$ também é par (pois sempre $c=b+d$). Isto mostra que os três termos do terno são pares donde segue que o terno não é primitivo.

Para provar o item (b) é necessário observar que, naquele caso, $b$ e $c$ serão naturais consecutivos; para provar o item (c) é necessário observar que $b$ e $c$ serão ímpares consecutivos e para provar o item (d) é necessário substituir $d=a/2$, ou $d=a/3$, na fórmula e analisar o resultado.

Exemplo 3: consideremos o caso $a=27$ ($a$ ímpar). Pondo $d=1$ obtemos o terno primitivo $(27, 364, 365)$; pondo $d=9=27/3$ obtemos o terno secundário simétrico $(27, 36, 45)$.

Exemplo 4: consideremos agora o caso $a=20$ ($a$ par do tipo $2(n+1)$ com $n$ ímpar). Pondo $d=2$ obtemos o terno primitivo $(20, 99, 101)$; pondo $d=10=20/2$ obtemos o terno secundário simétrico $(20, 15, 25)$.

Exercício 4: mostre que (i) nenhum terno pitagórico primitivo possui um dos catetos medindo $510510$ e (ii) para cada número primo $p$, existe um único terno pitagórico cujo um dos catetos mede $p$ e este terno é primitivo.

Solução: (i) resulta diretamente do item (a) do teorema 2 e (ii) resulta do item (b) do mesmo teorema (observe também que se $p$ é primo, então ele não possui nenhum divisor $d\neq 1$ satisfazendo as hipóteses do teorema – é isso que garante a unicidade).

Referências: Livro "Introdução à história da matemática" de Howard Eves e artigo na RPM 07 "Números Pitagóricos: uma fórmula de fácil dedução e algumas aplicações geométricas" de Andréa Rothbart e Bruce Pausell.

Erros podem ser relatados aqui.

2 comentários :

  1. Olá!

    Passando para lhe dar as boas vindas ao Educadores Multiplicadores. Um prazer tê-lo por lá!

    Seu blog é nota mil! Já estou seguindo!
    Um abraço fraterno!

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    Respostas
    1. Olá Vanessa. Obrigado pelo elogio e pelas boas vindas. Abraço. Pedro R.

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