domingo, 2 de outubro de 2011

A área do círculo: uma demonstração


Esta postagem se dedica a demonstrar a conhecida fórmula que fornece a área de um círculo em função do seu raio. Para tanto, vamos utilizar conceitos de trigonometria, geometria analítica e cálculo diferencial e integral - em especial a técnica de integração por substituição trigonométrica (desnecessário dizer que vamos lidar com funções de uma variável real). Vamos, então, ao que interessa:


Grosso modo, o Teorema Fundamental do Cálculo (TFC) nos diz que se $F$ é qualquer antiderivada (ou primitiva ou integral indefinida) de $f$, então:
$$\int_a^bf(x)\;dx=F(b)-F(a)$$
É comum interpretarmos a integral acima (ou seja, a integral de $f$ definida no intervalo $[a,b]$) como sendo numericamente igual a área de uma determinada região do plano, a saber, a área abaixo do gráfico de $f$, acima do eixo-$x$ e limitada lateralmente pelas retas $x=a$ e $x=b$:
(Note que a interpretação acima vale, apenas, quando $f(x)$ é positiva para todo $x$ em $[a,b]$.)


Da geometria analítica sabemos que uma circunferência de raio $r$ e centro na origem (de um sistema de coordenadas cartesianas) pode ser dada pela equação $x^2+y^2=r^2$. Se convencionarmos, como de costume, que o símbolo $\sqrt{}$ denota apenas a raiz quadrada positiva de um valor, podemos  dizer que uma semicircunferência (de centro na origem e raio $r$) pode ser dada pela seguinte equação:
$$y=\sqrt{r^2-x^2}$$
Observe o gráfico da função $y$ acima definida:
Tomemos, então, a seguinte função:
$$f(x)=\sqrt{r^2-x^2}$$
Para determinar a área de um circulo, podemos utilizar cálculo integral (calculando uma integral definida) e encontrar a área de uma das seguintes regiões:
Se escolhermos a primeira figura, deveremos calcular a seguinte integral definida (e obviamente multiplicar o resultado obtido por $2$, visto a região hachurada equivale à metade da área do círculo):
$$\int_{-r}^rf(x)\;dx$$
Mas, por simplicidade, vamos escolher a segunda delas:
$$\int_0^rf(x)\;dx$$
Escolhemos esta integral devido ao fato de este zero como limite inferior nos facilitar a vida. É obvio que deveremos multiplicar o resultado final por $4$ (pois a área hachurada equivale a um quarto da área total do círculo em questão).


Resumindo: se chamarmos de $A$ a área de um círculo de raio $r$ e centro na origem, teremos:
$$A=4\int_0^r\sqrt{r^2-x^2}\;dx$$
Mas, calculando esta integral definida, obtemos:
$$\int_0^r\sqrt{r^2-x^2}\;dx=\frac{\pi r^2}{4}\tag{$*$}$$
Portanto, segue-se que a área do círculo é dado por:
$$A=4\cdot\frac{\pi r^2}{4}=\pi r^2$$
Então, para cumprirmos o nosso propósito, basta mostrar que a igualdade $(*)$ realmente se verifica. É isto o que vamos fazer agora (detalhadamente).


Com já vimos (na parte do TFC enunciada acima), para calcular uma integral definida precisamos de uma antiderivada de $f$. Isto significa que precisamos calcular a seguinte integral indefinida:
$$\int\sqrt{r^2-x^2}\;dx$$
Aqui podemos utilizar a técnica da substituição, mais especificamente, a substituição trigonométrica. Para visualizarmos qual deve ser a substituição atente para o seguinte triângulo retângulo (onde colocamos a hipotenusa como sendo o raio do círculo e a variável $x$ como sendo um dos catetos):
Observe que a figura acima insere uma nova variável: o ângulo (que varia de acordo com a variação de $x$). Segue-se dela (da figura) que:
$$\operatorname{sen}{\theta}=\frac{x}{r}$$
Na expressão acima, isolando o $x$ obtemos:
$$x=r\operatorname{sen}(\theta)$$
Derivando a função acima (com relação à variável $\theta$) o resultado será:
$$\frac{dx}{d\theta}=r\cos(\theta)\quad\Rightarrow\quad dx=r\cos(\theta)\;d\theta$$
Olhe para a antepenúltima igualdade. Observe que ela implica o seguinte resultado (quando elevamos ambos os lados à segunda potência):
$$x^2=(r\operatorname{sen}(\theta))^2=r^2(\operatorname{sen}(\theta))^2=r^2\operatorname{sen}^2(\theta)$$
Substituindo estes dois últimos resultados na integral, obtemos:
$$\begin{aligned}
\int\sqrt{r^2-x^2}\;dx&=\int\sqrt{r^2-r^2\operatorname{sen}^2(\theta)}r\cos(\theta)\;d\theta\\\\
&=\int\sqrt{r^2(1-\operatorname{sen}^2(\theta))}r\cos(\theta)\;d\theta\\\\
&=\int r\sqrt{1-\operatorname{sen}^2(\theta)}r\cos(\theta)\;d\theta\\\\
\end{aligned}$$
Utilizando a "identidade pitagórica" $\operatorname{sen}^2(\theta)+\cos^2(\theta)=1$, obtemos:
$$\begin{aligned}
\int\sqrt{r^2-x^2}\;dx&=\int r\sqrt{\cos^2(\theta)}r\cos(\theta)\;d\theta\\\\
&=\int r\cos(\theta)r\cos(\theta)\;d\theta\\\\
&=\int r^2\cos^2(\theta)\;d\theta\\\\
&=r^2\int\cos^2(\theta)\;d\theta\\\\
\end{aligned}$$
Agora, utilizando a "identidade de redução de potência" $\cos^2(\theta)=\tfrac{1+\cos(2\theta)}{2}$, obtemos:
$$\begin{aligned}
\int\sqrt{r^2-x^2}\;dx&=r^2\int\frac{1+\cos(2\theta)}{2}\;d\theta\\\\
&=\frac{r^2}{2}\int(1+\cos(2\theta))\;d\theta\\\\
&=\frac{r^2}{2}\int 1\;d\theta+\frac{r^2}{2}\int\cos(2\theta)\;d\theta\\\\
&=\frac{r^2}{2}\theta+\frac{r^2}{2}\int\cos(2\theta)\;d\theta\\\\
\end{aligned}$$Vamos calcular a integral da direita utilizando a técnica da integração por substituição. Escrevendo $w=2\theta$, temos
$$\frac{dw}{d\theta}=2\quad\Rightarrow\quad d\theta=\frac{1}{2}\;dw$$
Substituindo na integral, obtemos:
$$\begin{aligned}
\int\cos(2\theta)\;d\theta&=\int\cos(w)\frac{1}{2}\;dw=\frac{1}{2}\int\cos(w)\;dw=\frac{1}{2}\operatorname{sen}(w)\\
&=\frac{1}{2}\operatorname{sen}(2\theta)\\\\
\end{aligned}$$
Portanto,
$$\begin{aligned}
\int\sqrt{r^2-x^2}\;dx&=\frac{r^2}{2}\theta+\frac{r^2}{2}\int\cos(2\theta)\;d\theta\\\\
&=\frac{r^2}{2}\theta+\frac{r^2}{2}\frac{1}{2}\operatorname{sen}(2\theta)\\\\
&=\frac{r^2\theta}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}(2\theta)}{4}
\end{aligned}$$
Observe que temos um resultado em termos da variável $\theta$. Mas nossa variável original é $x$, então precisamos voltar para ela antes de aplicar o TFC (pois os limites de integração $0$ e $r$ são dados em função de $x$. Poderíamos, alternativamente, reescrever os limites de integração em função das novas variáveis, mas preferimos a primeira opção). Lembrando, então, que $x=r\operatorname{sen}(\theta)$, podemos isolar o $\operatorname{sen}(\theta)$, tomar o $\operatorname{arcsen}$ de ambos os lados e obter:
$$\theta=\operatorname{arcsen}\left(\frac{x}{r}\right)$$
Fazendo esta substituição, finalmente obtemos uma antiderivada de $f$:
$$\begin{aligned}
\text{Antiderivada de }f&=\int\sqrt{r^2-x^2}\;dx\\\\
&=\frac{r^2\theta}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}(2\theta)}{4}\\ \\
&=\frac{r^2\operatorname{arcsen}\left(\frac{x}{r}\right)}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\operatorname{arcsen}\left(\frac{x}{r}\right)\right)}{4}
\end{aligned}$$
Observação: É comum, após calcularmos uma integral indefinida, somarmos uma constante (por vezes chamada "constante de integração"). Contudo, neste caso não precisamos somar nada, pois para aplicar o TFC (que é nosso objetivo) precisamos de uma antiderivada qualquer de $f$, o que equivale a dizer que a constante de integração é totalmente arbitrária. Assim, podemos escolhê-la como sendo igual a zero.


Agora, temos condições de aplicar o TFC (enunciado logo no início desta postagem) concluindo a demonstração:
$$\begin{aligned}
\int_0^r\sqrt{r^2-x^2}\;dx&=\left[\frac{r^2\operatorname{arcsen}\left(\frac{x}{r}\right)}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\operatorname{arcsen}\left(\frac{x}{r}\right)\right)}{4}\right]_0^r\\\\
&=\left[\frac{r^2\operatorname{arcsen}\left(\frac{r}{r}\right)}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\operatorname{arcsen}\left(\frac{r}{r}\right)\right)}{4}\right]\\
&\qquad-\left[\frac{r^2\operatorname{arcsen}\left(\frac{0}{r}\right)}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\operatorname{arcsen}\left(\frac{0}{r}\right)\right)}{4}\right]\\\\
&=\left[\frac{r^2\operatorname{arcsen}\left(1\right)}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\operatorname{arcsen}\left(1\right)\right)}{4}\right]\\
&\qquad-\left[\frac{r^2\operatorname{arcsen}\left(0\right)}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\operatorname{arcsen}\left(0\right)\right)}{4}\right]\\\\
&=\left[\frac{r^2\frac{\pi}{2}}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\frac{\pi}{2}\right)}{4}\right]-\left[\frac{r^2\cdot0}{2}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(2\cdot0\right)}{4}\right]\\\\
&=\left[\frac{r^2\pi}{4}+\frac{r^2\operatorname{sen}\left(\pi\right)}{4}\right]-\left[\frac{r^2\operatorname{sen}\left(0\right)}{4}\right]\\\\
&=\left[\frac{r^2\pi}{4}+\frac{r^2\cdot0}{4}\right]-\left[\frac{r^2\cdot0}{4}\right]\\\\
&=\frac{r^2\pi}{4}
\end{aligned}$$
Isto mostra que a igualdade $(*)$ se verifica e é justamente isto o que precisávamos mostrar.


Referência: livros de cálculo.
Erros podem ser relatados aqui.

11 comentários :

  1. Olá, Amigos Pedro e Caroline!

    É difícil encontrarmos nos livros didáticos, uma demonstração com riqueza de detalhes como essa aqui!
    Parabéns pela postagem tão importante para o estudo do cálculo diferencial e integral e também tão bem escrita! Uma joia de trabalho!

    Aproveito a ocasião, para lembrar que já estamos no período das inscrições do carnaval da UBM edição # 7. O mesmo vai... até o dia 12/10/2011. Espero encontrar vocês por lá!

    Um abraço!!!!!

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  2. Olá,
    Somos da UBM e gostaríamos de convidar você a participar de nossa segunda promoção, criando uma frase utilizando as palavras EDUCAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO e FUTURO, como resposta à pergunta: COMO A MATEMÁTICA PODE MUDAR NOSSAS VIDAS?

    As respostas serão encaminhada para a Editora Novatec e o autor da frase mais interessante receberá 2 livros.

    Veja mais detalhes no link :

    http://ubmatematica.blogspot.com/2011/09/2-promocao-da-ubm.html

    Contamos com sua participação!

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  3. Olá Francisco! obrigado pelo elogio e pelo lembrete do carnaval!

    Olá UBM, já estou participando!!

    Pedro R.

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  4. Oi, amigo, muito instrutiva a sua demostração. Em uma futura postagem minha, mostrarei o cálculo do cumprimento da circunferência com Integral.

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    1. Olá Aloisio, obrigado pelo elogio. Creio que o seu cálculo vai ser bem interessante. Espero para ver!.
      Abraço.
      Pedro R.

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  5. Eu tenho uma dúvida: ao montar a função do semi-círculo, utilizou-se o x como a variação da função no eixo x de acordo com a variação de y (sendo assim, cateto adjacente ao angulo trigonométrico). Porém, no desenho do triângulo pitagórico, o x passa a ser o cateto oposto, sendo a variação no eixo y. Por que se pode fazer isso?
    P.S.: tentei fazer com o x/r = cosΘ e a resposta está dando algo como A = [π.(1 - 2r²)]/2

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    1. Olá Pedro Rossetto. Você diz que "o x passa a ser o cateto oposto". Creio que explicação mais simples que eu possa dar para isso é a seguinte: experimente desenhar o triângulo da seguinte forma:

      |\
      |..\
      |...\ r
      |.....\
      |____\
      x

      Observe que a mesma conclusão é obtida (isto é, pouco importa a posição do triângulo). Sobre seu PS, confira os cálculos, pois eles devem fornecer a mesma resposta. Abraço.

      Pedro R.

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  6. Pedro Roberto;
    Por que você substitui o x lá no começo (por r e teta)? Não dava para fazer a integral da raiz quadrada?
    Parabéns pelo teu trabalho
    Paulo S. Lopez

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    1. Olá Paulo S. Lopez. Houve esta mudança de variável, pois aplicamos a técnica geralmente chamada de "substituição trigonométrica". Desconheço outra maneira de resolver esta integral sem fazer esta substituição. Obrigado pelos parabéns. Abraço.

      Pedro R.

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  7. Professor esse exercício de demonstração foi realmente muito bom ... eu gostaria de entender só um detalhe ... quando vc diz que apenas considera a parte positiva da raiz quadrada vc para calcular um semicírculo na verdade vc esta colocando a função em modulo correto??

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  8. Brilhante raciocínio, só tenho uma observação a fazer: Ao fazer a troca de variáveis(de x para teta), poderia se trocar também os limites de integração, fazendo a conversão para teta: x=r.senθ
    para x=0, senθ = 0/r = 0, θ=0
    para x=r, senθ =r/r = 1, θ=π/2
    no caso, escolhi o quarto de círculo para fazer a integração. Abç!

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