domingo, 31 de julho de 2011

Ainda outro erro sutil (sobre funções)


Na linha das postagens anteriores, vejamos mais um erro comum, que às vezes passa despercebido.

Suponho que o leitor saiba o básico sobre alguns conceitos relacionados às funções de variável real.
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Definição: Diz-se que uma função  : ℝ é estritamente crescente quando x₁ < xf(x₁) < f(x₂), para quaisquer que sejam os reais x e x.

Seja : ℝℝ tal que f(x) = 2xPergunta: f(x) é estritamente crescente ou não?
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Se você prontamente respondeu que sim e não notou nada de estranho na questão acima é conveniente relembrar algo sobre as funções.

Uma função pode ser vista como uma associação (ou correspondência) feita entre os elementos de dois conjuntos (eventualmente, mas não necessariamente, iguais).

No caso em que os conjuntos são numéricos (o que ocorre com frequência em matemática) muitas vezes esta correspondência é dada por uma regra. Mas devemos ficar atentos, pois uma regra se trata de uma função somente se a cada elemento de um determinado conjunto  fizer corresponder um único elemento do outro conjunto - mas este não é caso em questão.

Por exemplo, podemos definir uma função criando a seguinte regra da associação: a cada elemento do conjunto dos números naturais associamos o seu dobro. Assim:
  • ao 0 associamos o 0
  • ao 1 associamos o 2
  • ao 2 associamos o 4
  • ao 4 associamos o 8
  • ao 5 associamos o 10
E de uma maneira genérica:

ao elemento x associamos o elemento 2x

Então, de um modo geral, diz-se que temos uma função quando dados dois conjuntos A e B temos uma regra que permite a cada elemento de A associar um único elemento de BO conjunto A é chamado o domínio da função e o conjunto B é chamado o contradomínio da funçãoO símbolo (geralmente o x) que representa um elemento qualquer do domínio é chamado de variável independente e o símbolo (geralmente o y) que representa um elemento qualquer do contradomínio é chamado de variável dependente.

O nosso exemplo estabelece, portanto, uma correspondência entre o conjunto  dos números naturais e o conjunto  dos números pares. Para significar isso diz-se, geralmente, que esta correspondência é "uma função de  em " ou que a "função leva  em " ou ainda que a "função mapeia  em " e escreve-se
: ℕ

A expressão acima também é, por vezes, lida apenas como "efe de  em ". Observe que no nosso exemplo o domínio é  e o contradomínio é 

Geralmente, utiliza-se letras maiúsculas para representarem o domínio e o contradomínio e as letras minúsculas fg e h para denotar uma função:

AB                  XY                  CD

Afim de deixar clara qual é a regra de associação, utiliza-se a notação xf(x) para significar que ao elemento x de A fazemos corresponder o elemento f(x) de BAlternativamente pode-se dizer que esta notação indica que a função "transforma x em f(x)", ou seja, você toma um elemento x que está no domínio, aplica a regra e obtém um novo valor f(x) que está no contradomínio. Para este fim, também pode-se escrever f(xque indica o valor do elemento y do contradomínio que corresponde ao valor x do domínio.

Então, no nosso exemplo, para explicitar qual é a regra de associação, pode-se dizer que a função transforma um número no seu dobro ou que o valor correspondente ao elemento x é 2x e escrever uma das duas expressões abaixo:
                x2x                  = 2x

Uma outra notação muito utilizada é a seguinte:

f(x2x

Com relação a esta última notação, quando escrevemos f(x) e lemos "o valor de f em x", ou simplesmente, "f de xis" estamos nos referindo ao valor que a função assume quando aplicamos a regra de associação ao elemento xDeste modo, no exemplo dado, temos:
  • f(2) = 4, ou seja, quando aplicamos a regra ao elemento 2 obtemos 4Deste modo, dizemos que 4 é o valor que a função assume em 2 (ou no ponto 2). Dizemos também que 4 é a imagem de 2 por f.
  • Analogamente, dizemos que 10 é o valor que a função assume no ponto 5 ou que  f(5) = 10 ou que 10 é a imagem de 5 por f; e assim por diante.
Assim, para uma função qualquer, diz-se que f(x) é a imagem do elemento x por f. O conjunto que tem como elementos apenas a imagem de cada um dos elementos de A  é chamado a imagem de A por (observe que, no nosso exemplo, a imagem de A por f é igual ao conjunto formado pelos números pares positivos mais o zero).

Como já fizemos acima, mas não explicamos, ao nos referirmos à nossa função, em vez de dizer "a função de  em " e escrever : ℕ podemos apenas dizer "efe" e escrever (ficando os conjuntos  e  subtendidos - pois a função já foi definida previamente).

Resumindo o que nos interessa: o símbolo f designa a função enquanto que o símbolo  f(x) designa a imagem de um elemento qualquer do domínio.

Aparentemente qualquer livro que trata sobre funções - desde o mais elementar até o mais sofisticado - explica algo sobre estas notações, e em particular deixam claro o significado de f(x), mas curiosa e frequentemente as pessoas insistem em chamar uma função de f(x) quando na verdade o símbolo  f(x) representa apenas um ponto no contradomínio da função.

Há, portanto, quem se refira a uma determinada função como f(xescrevendo coisas do tipo:
  • ... f(x) é crescente...
  • ... o gráfico de f(x)...
  • ... seja f(x) uma função...
Acontece, porém, que esta terminologia é bastante inadequada. Com base no exposto acima, mais correto seria escrever
  • ... f é crescente...
  • ... o gráfico de f...
  • ... seja f uma função...
A notação f(x) representa, como vimos, o valor que a função assume quando aplicamos a regra de associação ao elemento x. Deste modo, estritamente falando e de acordo com a notação difundida, nenhuma das afirmações acima tem sentido se colocarmos f(x) em vez de fPortanto, uma maneira de responder à questão inicial é a seguinte: a pergunta é descabida e não tem sentido.

O que fizemos acima foi alegar que confundir f com f(x) é falta de precisão (uma característica fundamental da matemática). Mas é claro que, por outro lado, alguns podem argumentar que fazer distinção entre f(x) e é excesso de rigor. Contudo a diferença existe e , talvez, após ver a diferença passamos a compreender melhor o conceito de função.


Referências: Livros de Cálculo (Guidorizzi; Leithold; Larson; Stewart); Livros de Análise (Elon L. Lima; Cassio Neri); Livros de Álgebra Linear (Lipschutz; Anton); Livros de Ensino Médio (Matemática: construção e significado; Matemática do Ensino Médio; Matemática Aula por Aula).


Erros (de qualquer natureza) encontrados no conteúdo acima podem ser relatados aqui.

5 comentários :

  1. Olá, Pedro e Caroline!
    Valeu o alerta!!!!!!!!!!!!
    Olha, o que vocês puderem descobrir desses "erros" que cometemos sobre os conteúdos: geométricos, funções e matrizes... considero-os de crucial importância!
    Valeu!
    E aí, vem o "Carnaval nº 5"!!!!!!!!! Vamos participar... minha geeennnnteeeeeeeeee"!!!!!!
    Um abraço!!!!!

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  2. Interessante a observação. Realmente, o rigor é imprescindível na Matemática e erros de notações como esses representam descuido com o conceito.

    Na verdade, uma colocação pertinente também é a distinção entre funções crescentes e ESTRITAMENTE crescentes, muito embora nem todos os autores considerem essa diferença

    A meu ver, uma forma mais precisa para a definição dada seria:

    Diz-se que uma função f:ℝ→ℝ não constante é crescente quando x₁ < x₂ ⇒ f(x₁) ≤ f(x₂), ∀ x₁, x₂ ∈ ℝ.

    E mais:

    Diz-se que uma função f:ℝ→ℝ é estritamente crescente quando x₁ < x₂ ⇒ f(x₁) < f(x₂), ∀ x₁, x₂ ∈ ℝ.

    Abraços!

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  3. Francisco: também acho que são de importância crucial! E vamos que vamos para 5º carnaval!!

    Dados: Muito obrigado pela mais do que pertinente colocação. Até pq se o assunto é rigor ñ é conveniente apresentar uma definição imprecisa. Fiz questão de modificar o início.

    Obrigado e abraços a todos.

    Pedro R.

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  4. O alerta da precisão das definições é válido. Mas, após massificar bem as diferenças, o uso de expressões do tipo "seja a função f(x)=x-8" é muito mais prático, desde que não atente contra o resultado de uma demonstração. E é necessário fazer a ressalva do rigor antes. Um interessante exemplo disso é o livro Cálculo com Geometria Analítica de Volume I, de Simmons. Ele tem uma leitura extremamente agradável. Lendo esse livro eu aprendi que o excesso de rigor afasta o público amador e \ ou leigo. Simmons, na página 472, em relação a constante de integração, diz que " Será notado que inserimos a constante de integração somente na última etapa. Rigorosamente falando, isto é incorreto; mas nós, de propósito, cometeremos esse pequeno erro a fim de evitar o alavancamento de etapas anteriores com repetidos c.". Além do mais, digo eu, para o bom entendedor, meia palavra basta. Porque as vezes, a importância da precisão está no objeto da demonstração e não na linguagem utilizada. É irrelevante, para o amador / leigo, para quem se faça entender, que 8 é um número par ou que 8 é um numeral na base 10 que representa um número par.
    Muito bem montado sua série. Parabéns!

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    Respostas
    1. Olá Aloisio, neste exemplo que você citou não defendo que em cada etapa conveniente se deva somar a constante de integração, entretanto tenho convicção de que o indivíduo que está executando o processo deve estar plenamente consciente do que está a fazer (compreendendo, inclusive, porque é que é indiferente somar em cada etapa ou apenas no fim ). Mas você tem razão. E creio que, na exposição de um conteúdo, não é tão simples decidir até que ponto se deve avançar com o rigor (tudo depende do público, como você mesmo disse e ,de fato, temos que ter cuidado para não desmotivar o leigo). Obrigado pelo elogio. Abraço.
      Pedro R.

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