terça-feira, 10 de janeiro de 2012

ℚ é denso em ℝ. Qual é o significado disso?



Diz-se que o conjunto  dos números racionais é denso no conjunto  dos números reais. O que significa isso? É o que veremos a seguir.

AVISO: nesta postagem vamos, como de costume, interpretar o conjunto  como sendo uma reta. Segmentos representam, portanto, intervalos e pontos representam números.

Intuitivamente falando, dizer que  é denso em  significa que os números racionais estão completamente espalhados por toda a reta. Onde quer que você olhe na reta, você sempre verá números racionais. De um modo simples (e mais correto), significa que entre dois números reais distintos, quaisquer que sejam, sempre existe um número racional.

Deste modo, se alguém pedir para você achar um segmento de reta que não contenha números racionais você jamais vai conseguir e não importa quão pequeno seja o segmento tomado.

Entretanto, supõe que você acredite ter achado um pedaço da reta que não contenha sequer um único número racional. Vejamos, com uma argumentação geométrica, que você está enganado.


Aqui está a reta:
E aqui está um segmento dela selecionado por você (e que, conforme você acredita, não possui número racional algum):
Vamos mostrar que você está errado e que, portanto, tem sim um racional dentro deste segmento. O primeiro passo é localizar o zero. Há três possibilidades:

1ª Possibilidade para o zero (ele está "dentro" do segmento selecionado):
Neste caso não precisamos fazer mais nada, pois 0 é racional. Logo fica provado que entre a e b existe um número racional.

2ª Possibilidade para o zero (ele está à esquerda do segmento selecionado):
Neste caso, escolhemos um número racional r de tal modo que a distância entre 0r seja menor do que a distância entre a e b:
Marcamos um ponto à direita de r de tal modo que a distância entre r e este novo ponto seja a mesma que há entre 0 e r:
Continuamos com este procedimento de subdividir a reta em segmentos de mesmo comprimento:
Chegará um momento em que vamos obter um ponto verde muitíssimo próximo de a (podendo até coincidir com a):
O que vai acontecer agora? O próximo ponto, que chamaremos de m, vai ficar à direita de a, caindo dentro do segmento selecionado! (pois já que a distância entre os pontos verdes é menor do que a distância que há entre  a e b ele não pode cair fora):
Note que o segundo ponto verde representa o número 2r, o terceiro ponto representa o número 3r e assim por diante, sendo que cada ponto verde representa um múltiplo (inteiro positivo) de r. Agora, usando o fato de que o produto entre um racional e um inteiro também é um racional, podemos concluir que o ponto m também representa um número racional. Fica, pois, provado que entre a e b sempre existe um número racional, desde que o segmento esteja à  direita do 0.

3ª Possibilidade para o zero (ele está à direita do segmento selecionado):
Neste caso, marcamos na reta os simétricos de a e b (respectivamente, a e b):
O segmento delimitado pelos pontos b e a estão a direita do 0. Mas acabamos de ver (na segunda possibilidade) que se um segmento está a direita do 0 então existe um racional dentro deste segmento. Concluímos, assim, que existe um racional m entre b e a:
O próximo passo é marcar, na reta, o simétrico m de m (que, por simetria, vai cair bem dentro do segmento delimitado por a e b):
Como já mencionamos, um racional (neste caso m) multiplicado por um inteiro (neste caso −1) resulta em um racional, logo m é um racional que está entre a e b. Deste modo, fica provado que qualquer segmento à esquerda do 0 também sempre contém um racional e isto concluí a argumentação.


A argumentação acima é, sem dúvidas, muito convincente para crianças e para a maioria dos adultos (que possuem o mínimo necessário de instrução matemática). Ocorre, porém, que não se pode dizer o mesmo sobre os matemáticos (especialmente os autores de livros de análise) e sobre os estudantes de matemática.

É que do ponto de vista rigoroso a argumentação acima não demonstra nada. Contudo, apesar do valor de argumentos geométricos em demonstração de análise ser o mesmo que o valor do cruzeiro no comércio atual, é bem verdade que para o aprendiz eles são tão valiosos quanto uma moeda antiga rara é para um numismata, pois tendo compreendido o que foi exposto só o que falta para tornar o argumento uma demonstração legítima é formalizar as ideias (ou seja, dizer tudo o que foi dito em outra linguagem) sem deixar lacuna alguma (uma lacuna que ficou na argumentação acima é, por exemplo, a seguinte: quem foi que disse que existe um racional r com a propriedade de ser menor do que a distância entre a e b? Nós simplesmente assumimos a existência de r de modo peremptório).


Vejamos como apresentar as ideias acima sem qualquer apelo geométrico. Para tanto, não falaremos em "segmentos", mas sim em "intervalos". Não falaremos em "distância" (ou comprimento de segmentos), mas sim em "diferença"; não falaremos em "estar dentro de um segmento" (ou estar entre pontos), mas sim em "pertencer a um intervalo".


Queremos, então, demonstrar que  é denso em . Precisamente, isto quer dizer que todo intervalo aberto de números reais contém números racionais. O que faremos a seguir é mostrar que dados os reais a e b, com a < b, sempre podemos encontrar um racional m tal que ∈ (ab).


Observação: dados os reais a < b tem-se, por definição, (ab) = {∈ a < x < b}. Portanto, c ∈ (ab⇔ a < c < b.


Sejam, então, a e b números reais tais que a < b. Só existem duas possibilidades: 0 ∈ (abou  0  (ab). No primeiro caso tem-se a < 0 < b, já no segundo caso tem-se 0 ≤ a < b ou então a <  0. Analisemos cada possibilidade em separado:


Primeira Possibilidade: a < 0 < b
a < 0 < b é o mesmo que ∈ (a, b), logo não há mais nada para fazer (pois zero é racional).

Segunda Possibilidade: 0 ≤ a < b
Tome um racional r tal que r < b  aDefina o conjunto X = {x ∈ ℕ; xr > a}. Seja k o menor elemento de X. Afirmamos que kr ∈ (ab). De fato, se não pertencesse então seria kr ≥ b e, uma vez que (k  1) a, concluiríamos que kr  (k  1)r ≥ b  a, donde seguiria r  b  a - o que seria um absurdo.


Observações: Um racional r com a propriedade mencionada existe, pois basta por $$r=\frac{1}{n}$$, onde n satisfaz $$n>\frac{1}{b-a}$$. Como  é ilimitado em , um natural n que satisfaça esta condição existe e, por conseguinte, o racional r também existe (dizer que " é ilimitado em " significa que dado qualquer real, existe um natural maior); X é o conjunto de todos os múltiplos inteiros positivos de rPelo princípio da boa ordem temos certeza de que X possui um menor elemento; como k  1 < k e como k é o menor natural que multiplicado por r resulta em um número maior do que a, a única possibilidade que sobra é ser (k  1)r  a.


Terceira Possibilidadea <  0
Note que a <  ⇒ 0 ≤ b < ⇒ existe m ∈  tal que m ∈ (b, a⇒ < m < a ⇒ a < m <  ∈ (a, b).


Observações: a primeira implicação se justifica pela manipulação das desigualdades (basta multiplicar tudo por 1); a segunda implicação se justifica pelo resultado demonstrado no segundo caso; a terceira se justifica pela definição de intervalo aberto; a terceira novamente pela manipulação das desigualdades e a quarta, de novo, pela definição de intervalo aberto.


A demonstração está completa.


Exercícios (para preencher lacunas da demonstração acima): prove que dados arbitrariamente os racionais p e q, o produto pq também é racional. Prove que X não é vazio.


Esperamos ter oportunidade futura de melhor expor alguns conceitos que, neste texto, foram apenas mencionados.


Referências: Aula 03 de Análise na Reta (dada por Elon Lages Lima); livro "Curso de Análise Real" (de Cassio Neri e Marco Cabral).
Erros podem ser relatados aqui.

8 comentários :

  1. Nossa gostei muita da postagem. Principalmente da interpretação geométrica dos números racionais. E também a iniciativa de ressaltar que para matemáticos e estudantes de matemática a abordagem formal é muito importante. Então é um ótimo post que finalmente está disponível para muitas pessoas. Bem, não sei se tratará futuramente de segmentos comensuráveis e incomensuráveis. Apenas deixo como sugestão de postagem, pelo fato de o conjunto de pontos(números) racionais cobrir a reta densamente e nos levar a crer que todos os pontos sobre a reta são pontos racionais. E que se for observar isso não é verdade, pelo fato de existirem segmentos incomensuráveis que recai no conjunto de pontos(números) irracionais. Só fica como sugestão. Abraços e até a próxima.

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  2. Olá Rafael. Que bom que gostou. Obrigado pelo elogio e pelo tema sugerido. Sinceramente, não tinha intenção de tratar sobre isso, mas vou tentar elaborar algo (três coisas que podem ser interessantes sobre este tópico são: explicar o que significa incomensurável; mostrar que os irracionais também estão espalhados densamente sobre a reta; mostrar que existem mais irracionais do que racionais - com certeza isso é assunto pra várias postagens... vou tentar algo...)
    Abraço.
    Pedro R.

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  3. Muito bem bolado os esquemas e animações da demonstração. Muito boa a postagem. Parabéns!

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  4. Olá Aloisio. Obrigado pelos elogios! Abraço.
    Pedro R.

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  5. Olá, amigos... Pedro e Caroline!!!

    Depois dos comentários de Rafael e de Aloísio, fica difícil de se acrescentar algo mais, para essa excelente, interessante e tão cheia de qualidades,para essa postagem!!!

    Parabéns, gostei e acredito que vocês acertaram em cheio os anseios dos nossos leitores da blogosfera, na procura desses artigos, este inclusive, mas, que sejam escritos assim, com todas essa abrangência de qualidades didáticas e/ou gráficas!

    Bom, carnaval, sucessos e até ao próximo evento!!!!

    Um abraço!!!!!

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  6. Olá Francisco Valdir!! Muito grato pelos elogios. Acredito que, talvez, uma abordagem didática desperte o interesse dos leitores. Até +. Abraço.
    Pedro R.

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  7. Pedro, fico muito feliz em saber que existem pessoas como você que se preocupa em mostrar a clareza dos racionais, continue assim, que Deus te ilumine mais para que possa, através desta luz, nos mostrar a clareza dos conjuntos.
    Muito obrigado!

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  8. Olá Solon Ramos. Fico feliz que tenha gostado e grato pelos elogios. Que Deus te ilumine também. Eu que agradeço. Abraço.
    Pedro R.

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